Um comentário sobre o livro Cosmos de Witold Gombrowicz

Wibsson
3 min readFeb 26, 2017

Último romance do escritor polonês, que construiu grande parte da sua obra na Argentina, Cosmos é um romance policial anárquico, que explora personagens singulares e crimes absurdos. Um pássaro morto é o ponto de início de eventos que ora parecem se relacionar, ora parecem apenas aleatórios aos olhos de Witold, o narrador e Fuks, seu companheiro de viagem.

No início do segundo capítulo, o narrador diz que conta a história ex post, porque é impossível narrar dentro do caos e da aleatoriedade do fato conforme ele vai acontecendo, antes das atribuições de sentidos que só podem ser dadas após sua ocorrência:

Mas como contar o que quer que seja a não ser ex post? Será que nada poderá ser realmente dito, apresentado em seu estado anônimo, que ninguém jamais conseguirá expressar o murmúrio do momento que nasce? Será que nós, nascidos do caos, não conseguiremos jamais nos encontrar com ele? Basta olhar em volta e já, diante de nossos olhos, surge a ordem… e a forma… Que importa? Que seja assim.

Mas é exatamente a essa empreitada que ele se arriscará nas páginas seguintes, ao longo de um livro que vai, capítulo a capítulo, acompanhando a linguagem enlouquecida da mente do narrador, cada vez mais englobada pela confusão do presente imediato. Tentando aproximar-se da ideia de descrever o mundo e sua imediaticidade, aos poucos vai se evidenciando a impossibilidade de se estabelecer real sentido ao que se vive, ou ao menos o quanto há de irracional e inútil nessa atividade.

É comum a justaposição de objetos e imagens, expressas em uma grande aglomeração de palavras, que dispensam frases, predicados e complementos. São parágrafos formados por substantivos que se amontoam entre reticências, objetos que a priori não possuem identificação entre si mas vão, dentro da anarquia dos eventos que se sucedem na estranha pensão onde se ambienta a narrativa, construir uma insólita lógica interna. Gravetos, animais mortos, setas, agulhas, palha, cordas… tudo se amontoa em um romance policial de crimes tão obscuros quanto caricatos.

Mas a bagunça de objetos e situações é cortada também por súbitas descrições de paisagens poéticas e mágicas. As nuvens, as montanhas, as florestas, as estrelas de repente invadem os parágrafos em meio a pensamentos do narrador e a trama. A beleza do lugar se sobrepõe ao comportamento excêntrico das personagens, ao mesmo tempo contribuindo para adensar o teor onírico da narrativa.

Os diálogos são hilários e ameaçadores, fazendo lembrar as peças de Samuel Beckett e Harold Pinter. No penúltimo capítulo há um “debate” entre Leon, um dos donos da pensão e Witold, o narrador, que é um bombardeio de nonsense, um dos momentos mais climáticos da narrativa.

O romance pode ser encarado como uma reflexão sobre a nossa capacidade de associação, a forma como lidamos com as coisas que nos cercam e como nós ordenamos a realidade para que ela pareça mais tolerável. Nesse movimento, o romance questiona também o quanto há de aleatório e perigoso nessa organização que fazemos.

A história que se conta em Cosmos, iniciada in media res, jamais esclarece inteiramente o passado das personagens e mesmo pontos chaves da trama, que são “saltados” pelo narrador em suas confissões suspeitas, suas panes mentais e seus brancos de memória que, por fim, atestam a sua verdadeira incapacidade de narrar, já que tudo se torna uma confusão de eventos que se sucedem em um ritmo que torna impossível a apreensão da realidade de maneira razoável. Mas uma das perguntas deixadas ao leitor é: o quanto todos nós somos semelhantes a Witold em sua dificuldade de explicar e entender o que acontece no mundo? Cosmos é um livro inimigo da sanidade e do raciocínio formal.

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Wibsson

Escreve sobre literatura, historiografia, política e cinema.