Samurai é uma história sobre poder e fé, o conflito existente entre crenças e instituições. Há sempre pelo menos dois cristianismos, nos sugere a obra, o dos fracos e o dos poderosos. O primeiro é pleno, cheio de potência e criatividade. Não tem regras ou barreiras delimitadas. O segundo, ao contrário, é burocrático, paralisado, desfigurado por rituais e convenções. Samurai é uma declaração de amor ao ato de acreditar.
O enredo é simples, convincente o bastante para nos inserir dentro da complexidade psicológica dos dois personagens centrais. Estamos no Japão feudal, no século XVII. O cristianismo recrudesce, a fé torna-se proibida e os cristãos são perseguidos. Mas pouco antes das coisas piorarem, um senhor de terras do Japão envia Hasekura Rokuemon, o samurai protagonista, junto com outros samurais e o padre Velasco, um missionário franciscano, para uma expedição rumo a Nova Espanha (Novo México), buscando atar relações comerciais entre o império espanhol e os japoneses. O primeiro se joga na missão convencido de que o sucesso o trará de volta as terras originárias da família, orgulhando seu tio. É que sua família fora expulsa do local devido a conflitos políticos e agora ele vive em um charco, em situação inferior se comparado aos tempos anteriores de seus parentes. O segundo é mais ambivalente do ponto de vista moral: sua empreitada está conectada a sua ambição de tornar-se bispo do Japão. É um padre franciscano, e, em rivalidade com os jesuítas, busca conseguir expulsá-los do Japão e crescer em prestígio e opulência. É do contraste entre essas duas personalidades que Shusaku Endo irá extrair a força de sua história.
Os narradores em terceira pessoa oscilam entre o ponto de vista de Velasco, o padre, e o do samurai, às vezes alternando para uma primeira pessoa, a consciência e as cartas que o padre escreve. Com isso, penetramos nos desejos mais íntimos de Velasco, e somos apresentados a alguém de moral dúbia. Por um lado, há fé e devoção à igreja. Por outro lado, há também a sede por prestígio e poder, a reconhecida vaidade e desejo de tornar-se respeitado, inscrever seu nome na história da Igreja Católica. O Japão pra ele não é só uma missão religiosa, é um destino pessoal, uma sede de poder e glória. Em antagonismo, somos apresentado ao sentimentos do Samurai, que é guiado por um profundo senso de dever e honra, como seria de se esperar. Tudo que ele quer é orgulhar sua família, sua esposa e seu tio, mostrar-se como um guerreiro valoroso, não fazer seus aliados sofrerem, ter e dar uma vida digna aos seus próximos.
O livro é uma história de viagem, uma jornada em que acompanhamos o sofrimento nos navios, as mortes por doenças em alto mar, os zigue-zagues ao redor do mundo, o deslumbramento dos japoneses diante da vastidão da Europa e da América, e também os joguetes praticados por Velasco, as oscilações diante de instâncias de poder, o contato com governantes e poderosos distintos. A cada capítulo somos pegos com os deslocamentos políticos, as mudanças de decisões nas instâncias de poder. Estas alteram profundamente o destino dos indivíduos. Os emissários japoneses, incapazes de lidar com o que mal conhecem, se veem em uma tragédia, em grande parte construída pelas decisões passionais de Velasco, que os coloca diante da morte e do fracasso. A trama em si é previsível, o que importa, de fato, é justamente a construção dessa visão sobre o poder e o que verdadeiramente importa para os de baixo, afetados por decisões que eles não podem intervir.
Também é digna de nota a visão sobre uma incompatibilidade entre a cultura japonesa e a cultura cristã. Vários personagens manifestam essa opinião de que existe uma impossibilidade da parte dos japoneses de se conectarem ao transcendente. Os japoneses são demasiados apegados ao transitório, ao efêmero, ao agora. Seriam, portanto, incapazes de aceitar uma vida em um paraíso extraterreno, a existência de um ser superior. Também lhes é estranha a ideia de um deus sujo e maltrapilho, fraco e castigado. Esse diagnóstico, que já havia sido apresentado na obra Silêncio, de Endo, adaptada recentemente para o cinema por Martin Scorsese, é de alguma forma contrariado na conclusão da narrativa.
Outro conflito importante se relaciona com a disseminação do cristianismo. Está em operação no romance também uma ideia de autonomização das ideias, como se pudéssemos ver a ideia do cristianismo saindo do controle, se expandindo de maneira desordenada. Velasco não hesita em sugerir conversões em troca de benefícios pessoais (mercadores convertem-se em busca de melhores acordos comerciais, o drama dos samurais decorre de uma conversão episódica, visando resoluções imediatas etc.), vários cristãos japoneses parecem convertidos mais por ideias sobre o cristianismo que eles tem na cabeça, sobre o que eles imaginam que é ser cristão, do que pela tradição e do que é a religiosidade para os padres e governantes ocidentais; por outro lado, o cristianismo surge no coração do Samurai quando passa por condições de rejeição e abandono que o aproximam do calvário de Cristo, mostrando que se por um lado uma ideia pode ser transformada para se encaixar em interesses imediatos, também pode florescer a partir de vivências e experiências pessoais. Não há um cristianismo “certo”, há os descaminhos da fé e da Ideia. No romance, a religião se propaga pelo mundo por meio da dissimulação, do aproveitamento, da ganância, mas também é sugerido ali que ela pode florescer em meio ao inesperado, no coração daqueles que se viram esmagados por forças opressoras maiores do que eles.
O romance é uma especulação em torno de fatos da história japonesa que até hoje são mal esclarecidos. A expedição realmente ocorreu, bem como a tragédia que culminou na morte dos personagens centrais. Endo construiu um monumento em homenagem a força de ideias que sobrevivem a despeito da opressão de instituições. Há inegavelmente um componente metafísico emergindo da trama. Impossível que o leitor não saia com a sensação de que o que Endo pretendia era construir uma visão a respeito da fé, e uma crítica implacável à política, o conflito entre espírito e carne. As instituições, o Vaticano, o Shogunato, os impérios europeus e asiáticos não são capazes de conter uma crença, mesmo quando ela é regada pelo erro, como no caso de Velasco. Mesmo quando o arrependimento é também a condenação, o mais importante é acreditar.
Trecho:
— Os japoneses são insensíveis a tudo que seja absoluto, a qualquer coisa que transcenda o nível humano, à existência de qualquer coisa além dos domínios da natureza, ao que chamaríamos de sobrenatural. Percebi isso depois de trinta anos lá como missionário. Era coisa simples ensinar-lhes que esta vida é transitória. Eles sempre foram sensíveis a este aspecto da vida. O que é assustador é que os japoneses também têm a capacidade de aceitar e até apreciar a fugacidade da vida. Essa capacidade é tão profunda que eles chegam a se deleitar com o conhecimento desse fato. Até escreveram muitos versos inspirados por essa emoção. No entanto, os japoneses não fazem nenhuma tentativa de ir além desse conhecimento. Eles não têm desejo de progredir para além deles. Eles abominam a ideia de fazer distinções claras entre o homem e Deus. Para eles, mesmo que haja alguma coisa maior que o homem, isso é algo que o próprio homem pode vir a se tornar um dia. Buda, por exemplo, é um ser que o homem pode se tornar uma vez que abandone suas ilusões. Até a natureza, que para nós é algo totalmente separado do homem, para eles é uma entidade que abraça e envolve a humanidade. Nós… falhamos em nossas tentativas de corrigir essas atitudes.