“É tarde demais para morrer com elegância” — Victor Heringer: “O amor dos homens avulsos”

Wibsson
4 min readSep 5, 2016

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  1. Ao abrirmos o livro, nos deparamos com fotos 3x4 de uma criança, trazidas do acervo pessoal do próprio autor. Passada a epígrafe, nos é apresentado um “informe meteorológico”, no tom irônico/objetivo típico dos poemas de Victor Heringer, dando as coordenadas climáticas do romance (não passará dos 31ºC) e o aviso de que a história se ambientará muito longe do mar. Logo na primeira página, o narrador, em primeira pessoa, nos apresenta o subúrbio carioca em uma descrição humorada que antecipa o tom de deboche e relativo enfado da personagem em seus momentos iniciais.
  2. Estamos no subúrbio, no bairro fictício do Queín. É sempre calor e abafado. É uma narrativa que pinga de suor e corpos que exalam fedor incômodo do sovaco. O sol é um empecilho ao conforto. Estamos em um cenário muito brasileiro e muito carioca, mas, como alertado no início, não há praias nem as paisagens que nos remetem tipicamente ao nosso país. Estamos falando dos bairros distantes, onde a cerveja esquenta no copo, mas não se joga fora, onde armam-se as piscinas de plástico, os botecos fecham tarde e as crianças brincam o dia inteiro.
  3. É um livro montado com palavras quentes. A narrativa tem cor amarelada. O narrador até grafa um pequeno símbolo para representar o sol. Está todo mundo de chinelos, bermudas, regatas.
  4. Gravuras e fotos se intercalam ao longo da narrativa. O narrador é desenvolto e experimenta por caminhos cômicos, como por exemplo a longa e elaborada lista de comportamentos de sua turma do ensino fundamental, lista que, salvo raríssimas exceções, se aplicaria a toda a humanidade; ou o momento em que a personagem delira e narra uma quadrilha à la Drummond que dura mais de quatro páginas em que ao final ninguém fica sem um par.
  5. O narrador se sente à vontade para de tempos em tempos disparar reflexões sobre a vida, os sentimentos, o amor, o ódio, o rancor e tudo o que lhe vem à cabeça, sempre em linguagem leve e coloquial. De onde menos espera, surgem aforismos sobre a vida suburbana elegantemente baseados no tédio e desamparo que acomete as personagens.
  6. A trama começa lenta e cativa a partir de uma lógica que enreda o leitor na narrativa através de informações jogadas aos poucos, parcialmente. O narrador começa o livro lembrando da sua infância durante a Ditadura Militar — onde seu pai está metido — e mostra o desenvolvimento de um amor inesperado — seu primeiro — e as terríveis consequências decorrentes desse relacionamento.
  7. O amor e a ternura são os temas centrais deste livro. Acompanhamos o protagonista, um garoto frágil que tem um problema na perna, no desabrochar de sua sexualidade, quando aprende a se masturbar, convive com outros meninos de sua idade e tem suas primeiras experiências fraternais até despertar para sua primeira grande paixão. Em diversos momentos o narrador brinca com o grotesco, tanto o grotesco de dentro da personagem central quanto o grotesco oriundo da violência do subúrbio, do perigo das ruas, da beleza e da feiura da vida da classe média baixa.
  8. De repente, parece que a obra se filia a um outro autor clássico de nossa literatura. Se não o Machado de Assis que tão fortemente influencia o autor, outro carioca mais próximo de nós: Rubem Fonseca. O suor, o crime o subúrbio e o brutalismo se instauram na narrativa. O romance parece caminhar para uma solução violenta, de tom naturalista, mas volta atrás e constrói um outro caminho, que redime e oferece a paz através de outras escolhas feitas pelas personagens. O autor passeia por tradições da literatura nacional e nos joga em caminhos inesperados.
  9. No tempo presente da narrativa, o narrador, já um velho folclórico no bairro, interage com Renatinho, menino de hábitos semelhantes ao das crianças da década de 1970. As práticas que permanecem na vida suburbana, junto com a menção à Darcy Ribeiro, nos dão pistas de que estejamos diante não só de ficção ,mas também uma leve incursão antropológica e memorialista na vida de crianças de classe média baixa.
  10. O romance prepara um clímax que parece confirmar a filiação brutalista que se intui de suas páginas intermediárias. O tom naturalista parece se impor, até que a trama surpreende e retoma o tom mais realista e “frio”. Após parágrafos longos que acompanham a explosão de ódio do narrador o livro migra para uma terceira pessoa mais afastada dos eventos e afetos da primeira parte do livro, encaminhando então a conclusão da narrativa. O livro termina em tons machadianos. O final é opaco, em uma noite de Natal no qual a solidão das personagens ocupa as páginas. Mas o ódio cede lugar ao amor, ou a tentativa de construção do amor. O rancor não prevalece.
  11. Victor Heringer encerra a sua pequena fábula urbana em luzes baixas mas, ainda assim, luzes. Como as janelas das famílias brasileiras ao redor das mesas de jantar. Os homens avulsos carregam consigo grandes tragédias. O livro após nos conduzir através de cenas de brutalidade nos entrega um momento de compaixão e afeto. Suburbano, pálido, um afeto possível de ser inscrito nos nossos tempos.

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Wibsson

Escreve sobre literatura, historiografia, política e cinema.